
Imagem: Fra Angélico, Instituição da Eucaristia, domínio público (Wikipédia)
Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Jo 13,21-33.36-38. Trata-se do encontro de Jesus com os discípulos num jantar judaico, não necessariamente a última Ceia, como nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Essa agem faz parte, no evangelho de João, do livro da glorificação de Jesus (Jo 13,1—30, 31), isto é, de sua morte e ressurreição. Três discípulos e o canto tríplice do galo são destaques na narrativa para falar de nossa condição humana na relação com Deus. Amar, trair, negar ressoam fortes nas trevas das noites e no clarão dos dias de João, de Judas e de Pedro. São três pessoas, três ações e três cantos do galo. O que tudo isso significa em Jo 13? Vejamos!
Após lavar os pés dos discípulos, Jesus revela o traidor que deveria cumprir o seu papel de entregá-lo às autoridades religiosas e civis da Palestina. Jesus, comovido, sente o drama humano da traição, ao afirmar: “Um de vós vai me trair”. Os discípulos ficaram confusos. Dois deles agem imediatamente: Pedro, considerado a liderança da comunidade, e João, o discípulo amado, conforme a tradição que achou por bem identificá-lo como sendo essa personagem. Pedro instiga João a perguntar sobre quem seria o traidor.
João, nome hebraico que significa “ternura de Deus”, por ser o discípulo de confiança, estava em lugar de destaque, recostado ao lado mestre. Na época de Jesus, o povo não conhecia talheres, mesa, nem cadeiras para se sentarem. Eles comiam recostados. Molhavam, com as mãos, um pedaço de pão numa a de caldo, que ficava no centro da roda, e o trazia à boca.
Judas, filho de Simão Iscariotes, aquele cuidava do dinheiro que os apóstolos recebiam para a sobrevivência, está centro da narrativa, mas nada fala. Jesus diz que o escolhido seria a quem ele desse um pedaço de pão. Judas, sem contestar a fala de Jesus, assume o seu papel de traidor e sai logo de cena. A narrativa é impactante: “Depois do pedaço de pão, Satanás entrou em Judas. Então Jesus lhe disse: o que tens a fazer, executa-o depressa” (Jo 13,27).
Era noite, quando isso aconteceu! Esse contraste entre luz e trevas faz parte do evangelho de João. O momento é de escuridão. Jesus, a luz que brilhou no meio deles, estava prestes a ser apagado na escuridão da traiçoeira da noite que levou Judas ao tropeço fatal.
Quando Jesus escolheu os doze, ele afirmou que um deles seria o Diabo (Jo 6,70), isto é, seu opositor. No evangelho de Mateus, Judas, consciente de seu plano para prender Jesus, ainda pergunta, negando a sua culpa: “Por acaso sou eu, Senhor?” Jesus responde com uma afirmativa: “Tu o dizes” (Mt 24,25). O fato de Satanás, e não o Capeta, entrar em Judas significa que ele assume o papel de opositor ao plano de Jesus. Ele teria que cumprir logo a sua missão. Com isso, Jesus demonstra que ele é o Senhor de sua vida. Quem come no mesmo prato torna-se um traidor. Esse é o drama humano! Quem de nós já não ou por isso? Os discípulos, assim como nós, convivem com traidores e nem nos damos conta de que ele está à mesa conosco. Nos momentos de luz em nossa vida, somos João, somos amor. Quando a trevas da vida nos envolvem, somos Judas, somos traidores. Amor e traição fazem parte de nossa vida.
A presença de Pedro ressalta outra debilidade humana, a negação, que é também sinônimo de traição. Na sequência, Jesus se despede dos discípulos e exorta-os a amar uns aos outros com amor fraterno, e anuncia que voltaria para Deus. Pedro manifesta desejo de ir com Jesus, mas isso seria impossível Jo 13, 31-35). Então, Pedro, fazendo jus ao significado do seu nome (pedra e gruta), responde com a firmeza da pedra e a proteção da gruta escavada na pedra: “Eu darei a minha vida por ti!” (Jo 13, 37). Jesus sabia que Pedro não chegava a ser um Satanás, mas que ele o negaria por medo da morte. Fato que viria a ser comprovado com o canto do galo, que com sua melodia nos desperta, todas as manhãs, do sono da morte e da escuridão da noite, na eterna dinâmica da luz e das trevas. No tempo de Jesus, o galo era o despertador. O fato de o galo, considerado um ser irracional, saber discernir, com o seu canto, a noite do dia, contrasta com o humano Pedro, que ainda não tinha aderido, suficientemente, ao projeto de Jesus.
Outro detalhe que salta aos olhos é o fato de o galo cantar três vezes. O três é muito significativo para falar da criação divina. Com o três, Deus deixou sua marca na criação do mundo, ao criar a água em três estados (sólido, líquido e gasoso); ao compor o átomo de elétron, próton e nêutron; ao criar a vida com ado, presente e futuro, princípio (nascimento), meio (vida) e fim (morte).
O canto do galo confirma a tríplice negação de Pedro, que se contrapõe às três perguntas que Jesus ressuscitado fez a ele: “Tu me amas? (Jo 21, 15-17). Além disso, recorda que Jesus morreria às três horas da tarde e que ressuscitaria ao terceiro dia. Por fim, o João que ama, o Judas que trai e o Pedro que nega somos todos nós, num misto de luz e trevas, noite e dia, no drama de nossa existência humana e divina.
[1]Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ